“Não existe cidade inteligente sem gente”
Luiz Alberto Rodrigues é autor de um livro sobre o assunto e concedeu uma entrevista exclusiva ao Diário do Grande ABC
Disponibilizar um portal na internet não basta para tornar uma Cidade Inteligente. Informações sem padronização, que não possam ser lidas e interpretadas para gerar processos que melhorem a eficiência dos serviços públicos aos munícipes, são inertes. Fundador e CEO da Eicon, empresa de São Bernardo especializada em sistemas de administração pública, Luiz Alberto Rodrigues lançou um livro – Cidades Inteligentes em Perspectiva: Sem Gente a Cidade é uma Triste Ficção – no qual propõe redirecionar a tecnologia para entender, e atender, o cidadão, que deveria ser o centro das decisões dos prefeitos.
Qual é o conceito de cidades inteligentes, sobre as quais seu livro fala?
Há várias vertentes. Quando se fala em smart city, sempre olham para mobilidade urbana e sustentabilidade. Mas, quando resolvi escrever o livro sobre cidades inteligentes, eu estava olhando as pessoas. Quem são essas pessoas? Como elas circulam nas cidades? Como se relacionam com o governo? Como elas podem avaliar as áreas do governo? Porque hoje não temos uma avaliação estratégica do governo.
Qual a dificuldade de se implantar uma Cidade Inteligente?
É uma questão de comunicação. Os portais não foram construídos para que as classes C, D e E tenham acesso. Infelizmente, de forma sistêmica, temos o que chamamos de gestão de relacionamento, que não é voltado às classes C, D e E, onde estão os principais usuários da cidade, dos serviços de saúde e educação, e que têm dificuldade de se relacionar com o governo. Foi justamente para abrir a perspectiva de se pensar além da mobilidade urbana, de nos comunicarmos com os cidadãos, todos eles, é que nos propusemos a escrever o livro.
Qual a proposta do livro?
Desafio qualquer pessoa do governo a entrar em seu próprio portal e tentar executar um serviço. Ela não consegue uma comunicação simples, fácil, como hoje os aplicativos oferecem para toda a população e qualquer tipo de usuário. É muito difícil. Os portais, hoje, têm quatro vertentes – saúde, educação, tributária e uma geral, com toda as notícias do governo –, quando deveriam ter uma única vertente, destinada a facilitar o relaciomento com a população.
Onde estão os gargalos?
Os governos não têm uma plataforma integrada. Não conseguem saber quais são os usuários da saúde, da educação, quem consome os serviços e quais as suas reais necessidades e demandas. O livro se propõe a mostrar a dificuldade que o cidadão tem para se relacionar com a cidade e propor soluções.
O sr. é categórico em dizer que atualmente não existe Cidade Inteligente no Brasil?
Com certeza absoluta, não tem. Nem as capitais. Hoje, o usuário consegue avaliar o serviço da Uber, mas não consegue avaliar a qualidade do serviço da saúde oferecido pelo município, ou o da escola. Nem mesmo consegue acompanhar a solicitação da poda de uma árvore ou de um tapa-buraco. Não há como dizer se você está satisfeito com o serviço tomado ou não. Dessa maneira, a avaliação do governo sobre a qualidade dos serviços que presta é uma pseudoavaliação. Não existe no Brasil, hoje, um processo de Cidade Inteligente voltado ao cidadão, de modo que se saiba quem ele é, o que possui, o que utiliza e o que consome. Não existe Cidade Inteligente sem gente.
E o que os municípios precisam fazer para incluir o cidadão neste processo?
Primeiro seria preciso possuir uma plataforma única de cadastro. Hoje, é tudo separado. Há um cadastro para a saúde, outro para a educação, mais um para o tributário. Seria o prontuário do cidadão. Quem ele é na cidade. Territorializá-lo e saber quais os serviços que consome, os filhos que tem, se toma medicamentos e quais. Enfim, quem ele é. Ele realmente mora na cidade? Porque esse é um problema das metrópoles, a evasão. Muitas vezes ele mora em uma cidade e toma serviços da outra.
Já existem instrumentos capazes de oferecer esses serviços aos gestores?
Existem. São plataformas de unicidade cadastral, que mostram quem é a pessoa, o que ela utiliza, o que consome, o que possui, se tem débito ou não. Esse cadastro permitiria ao cidadão que pudesse se ver como parte da cidade: seu cadastro no SUS (Sistema Único de Saúde), qual a escola dos filhos, quais as notas que eles tiraram nas provas. Imagine! Mas nem a cidade de São Paulo possui essa tecnologia ainda. Hoje é tudo muito fatiado e sem linguagem acessível a todas as classes. O ideal é, com um único acesso, poder fazer qualquer tipo de solicitação ao governo e que o processo seja conclusivo.
Conclusivo?
Hoje, a maior parte dos portais é informativa. Não consigo solicitar alguma coisa e acompanhar o atendimento. O máximo que se consegue hoje é um número de telefone para obter informação. A proposta das cidades inteligentes é dar transparência. Se solicitar uma poda de árvore, por exemplo, o sistema vai informar o lugar na fila, a data da realização do serviço e vai comunicar claramente ao cidadão quando, e se, houver atraso.
Qual é o papel do cidadão na cobrança por um município inteligente?
A iniciativa tem de ser do poder público. O cidadão, principalmente os da classe C, D e E, não tem ferramentas para saber que isso é possível. É do prefeito, que é um grande CEO, que tem de partir o processo de modernização para poder entregar algo mais prático ao cidadão, que é o seu cliente.
E quando os prefeitos não fazem a parte deles, de quem tem de partir a cobrança?
Da sociedade. A mídia tem papel importante. É preciso mostrar que já existem processos que tornam a prestação de serviços mais eficazes. Hoje, assim que o passageiro desembarca de um voo, ele já recebe um questionário para fazer a avaliação. Na área política, temos zero de avaliação. O máximo que se pode fazer é uma reclamação, que também não sabemos se vai ter eco ou não.
O sr. faz uma relação direta entre cidades inteligentes e redução de impostos...
É simples. Sempre ouvimos falar que o Brasil não tem mais condições de aumentar a carga tributária. Já temos uma das maiores taxas do mundo. Então, o que temos de buscar é a eficiência. Saber quanto cada cidadão custa per capita e ver se é possível economizar na estrutura – na saúde, por exemplo, é preciso saber quanto custa a manutenção do prédio, a energia, os salários dos profissionais – para ver se aumento a quantidade do serviço ofertado ou a sua qualidade, com os mesmos recursos.
O sr. fala, no livro, sobre o poder local como chave do desenvolvimento das cidades. O que vem a ser este conceito?
O poder local é conhecer a aptidão do município. Cada um tem uma. Que caminho está seguindo, qual o histórico. Vejamos o Grande ABC. Era muito industrial, depois começou a se transformar em prestador de serviços. São Caetano é uma cidade que sofreu muito quando deixou de ser industrial. O município foi obrigado a mudar seu caminho porque, senão, a arrecadação ficaria comprometida e não teria mais como entregar aquilo que entregava no passado. Daí a grande importância do processo de conhecimento da economia local e a tendência. Há ferramentas que são capazes de olhar para uma cidade qualquer e entender a deficiência econômica de cada bairro, da região e que tipo de segmento poderia garantir o desenvolvimento. É o empreendedorismo vinculante.
De que maneira esse empreendedorismo vinculante poderia ajudar a atrair empresas e, consequentemente, empregos e impostos?
Hoje, o risco é todo do empreendedor. Quero montar uma atividade e escolho aquele local. Se vai dar certo ou não, o risco é dele, quando, na verdade, já existem condições de se ter estudo, baseado no tipo de população, deficiência de atividade econômica, para direcionar um crescimento mais sustentável. É por isso que atualmente abrem-se muitas empresas e também fecham-se muitas empresas.
Baseado nestes dados, é possível saber como vai ser o Grande ABC daqui a 30 anos?
Dá para planejar. Basta pegar as empresas de grande porte e os grandes prestadores de serviço, identificar o que eles consomem de fora, o que não é produzido na região, e atrair esses segmentos para abastecê-los, de modo a criar um mercado local. O norte é buscar uma economia autossuficiente. Por que o Grande ABC não cria uma política de atração de empresas que fornecem peças para, por exemplo, a Volkswagen, de modo que ela passe a comprar aqui o que hoje busca lá fora? As sete cidades deveriam ter um núcleo que olhasse a economia da região toda.
Uma discussão dessas deve necessariamente ser feita por organismo multilateral. O Grande ABC tem o Consórcio Intermunicipal...
Tem de ser. Não é São Bernardo pensando em São Bernardo e Santo André pensando em Santo André. O importante é um processo de fortalecimento da economia regional. Vemos os consórcios, não o daqui, mas no mundo, interagindo bem na mobilidade entre as cidades, mas não na economia. Há disputas do eu, não do nós. Acho que tem de mudar o conceito.
O sr. tem ideia para um outro livro?
Já comecei a esboçá-lo. Será sobre reforma administrativa. O Brasil precisa de uma. Precisa de padronização da informação, que hoje não existe. É o governo central, lá de cima, que deveria impor o modelo de padronização de informações, para que possam ser lidas de forma inteligente para criar estruturas de desenvolvimento e planejamento. Quando falo desta reforma, falo da esfera social, econômica, financeira e de ocupação de solo. Hoje não há essa padronização nacional, então cada município propõe suas políticas baseadas em critérios pessoais. No livro, vou mostrar como essa falta de padronização acarreta desperdício, falta de planejamento, falta de crescimento e falta de conhecimento de onde investir.